21 de set. de 2021

Pensamentos na quietude da noite

O velho Oro veio visitar Dhalsim em uma noite sem lua.

“Prepare-me qualquer coisa... ou talvez um pouco de curry”, disse Oro, de forma jocosa.

Depois que Sally, a esposa de Dhalsim, preparou a refeição para o velho, ele murmurou baixinho consigo mesmo.

“O que é poder?”

O céu estava mais roxo, não mostrava uma lasca de lua.

Após o jantar, o hóspede recusou a oferta de mais chai de seu anfitrião com um aceno de cabeça e o seguiu para a varanda.

Ainda há um pequeno resquício do calor diurno que desmanchava na brisa. Estava tudo tranquilo; arejado, escuro e imóvel.

“Uma refeição maravilhosa. Esplêndida! Agora, já provei curry de verdade. Vocês, indianos, têm uma excelente interpretação culinária.” A voz do hóspede era tingida com a idade, mas ressoava com satisfação. Ele usava uma única tanga esfarrapada e a brisa corria pelos cabelos esparsos em sua cabeça.

Ele se chamava Oro. Um eremita, um Sennin.

Dhalsim, o sacerdote hindu, curvou os lábios em um sorriso irônico.

“Estou feliz que você esteja satisfeito com a refeição.”

Ele não seria tão grosseiro a ponto de dizer ao convidado que a refeição não era curry, mas masoor daal.

De qualquer maneira, as lentilhas cozidas de Sally eram as melhores da região, de modo que o velho eremita poderia chamar o prato da maneira que quisesse.

Havia questões mais importantes a serem discutidas.

Dhalsim encarou Oro em silêncio. Ele sabia muito bem que o eremita de cento e quarenta anos não procuraria a companhia do sacerdote apenas para desfrutar de uma refeição.

No entanto, Dhalsim não fez perguntas. Ele estava contente em esperar.

“Hmm...”

Oro ficou em silêncio por um momento e depois falou como se conversasse com o céu noturno.

“O que você acha desse Psycho Power?”

Dhalsim poderia adivinhar que o eremita abordaria esse assunto. Psycho Power... Ele pensou na organização maligna que tentaram dominar o mundo.

Shadaloo.

O poder malévolo de que Oro falava foi desejado, perseguido e reivindicado pelo líder da Shadaloo. Já se passaram algum tempo desde que Dhalsim colocou sua vida em risco para livrar o mundo do Psycho Power, mas recentemente ele sentiu os tremores de sua presença mais uma vez.

“É perigoso demais para qualquer homem o possuir.”

O eremita gargalhou.

“Que resposta direta! Tão sério! Tão chato.”

Oro continuou,

“E o seu Yoga, hein? Suponho que não seja perigosa para humanos, e ideal apenas para apresentações de rua?”

Ofendido, uma onda de raiva turvou a aura de Dhalsim. Ser ridicularizado por sua arte – o caminho pelo qual ele dedicou sua vida – era demais. Mas o paciente sacerdote controlou-se, percebendo a provocação galhofeira.

“Não, Sennin. Se usado incorretamente, o Yoga também pode ser perigoso.”

“Hmph. Sim, eu sei.” Oro encolheu os ombros, parecendo triste por não ter conseguido uma reação do seu estoico anfitrião.

Houve uma pausa enquanto cada homem contemplava a noite. Então, Oro golpeou o ar com o punho fechado diante dele. O movimento foi repentino o suficiente para que Dhalsim o sentisse movimentar o ar. Era um punho que parecia robusto demais para um velho, robusto demais para qualquer mortal, um emaranhado de ossos e tendões duros como pedra, afiados por inúmeros anos de treinamento. Era um punho que agora brilhava com fosforescência azul-branca. Esse era o poder do “ki”, fruto de treinamento e autodisciplina. Ápice das proezas marciais atingidas por alguns poucos lutadores selecionados que transcenderam sua natureza física em combates. Dhalsim cerrou os olhos quando o brilho do espírito de luta do velho ardeu cada vez mais forte em seu punho.

E de repente, desapareceu. Oro abriu o punho e a luz se espalhou como vaga-lumes. O movimento, do começo ao fim, não havia sido um ataque. O velho, pelo menos por enquanto, não pretendia lutar.

“Esse é o poder do ki; você já o viu antes. Um passatempo para os mais novos.”

"De fato ..." respondeu Dhalsim.

Ele pensou naqueles que encontrou que seguiram o caminho do domínio do ki. Na visão do eremita, eles poderiam ser apenas jovens comuns, mas todos eram lutadores altamente disciplinados.

“Pois bem, agora...”

As pálpebras de Oro caíram em concentração. Seus pés deslizaram pelas tábuas do piso enquanto abaixava sua postura. Uma respiração sibilou em suas narinas. Mais uma vez.

Perigo. O corpo de Dhalsim parece prevê-lo antes que sua mente tome consciência, deslizando para uma posição defensiva por vontade própria.

Há um deslocamento de ar. Atingido por um tranco que parecia deformar a escuridão da noite, a pele de Dhalsim enrijece em calafrios.

A respiração de Oro sacode o chão como um estrondo.

Seus olhos, geralmente tão impenetráveis, tornaram-se vermelhos como a de um animal selvagem, e seu punho foi engolido por uma escuridão enfumaçada que ofuscava o céu noturno.

É o... Satsui no Hado!

Instantaneamente, Dhalsim se prepara. Os dois homens que conversavam tão casualmente agora estavam separados pela distância de um golpe mortal. E mesmo sabendo que recuar um passo... não, nem mesmo um milímetro... seria suficiente para esquivar-se de um golpe fatal, Dhalsim não teve outra escolha.

Seus punhos alinham-se diante de seu rosto em posição de oração ao deus Agni. Onde, momentos antes, havia um anfitrião do jantar, agora estava o lutador Dhalsim, preparado para defender sua vida. Ele já lançou milhares de ataques a partir dessa posição. O ataque do Sennin, envolto pela morte, não poderia ser parado nem esquivado.

Em vez disso, ele se arriscaria.

Em um ataque decisivo, o resultado de todo o seu treinamento e experiência seria posto em prova.

Enquanto Oro e Dhalsim refletiam sobre o perigoso poder que os lutadores exercem, o estado de espírito de Oro sofreu uma mudança drástica.

O Satsui no Hado começou a inchar e envolveu o velho eremita quando ele repentinamente confronta Dhalsim com o mal em seus olhos.

Na presença sufocante da morte certa, Oro se aproxima de Dhalsim com apenas uma coisa em mente.

Mesmo que ele e seu convidado, consumido pelo Satsui no Hado, tivessem que se matar no mesmo instante.

Mesmo que o menor movimento significasse a diferença entre a vida e a morte.

Os nervos de Dhalsim formigavam de um pavor angustiante.

A determinação em conter seu oponente aguça a consciência de Dhalsim, organizando todos os seus sentidos.

Sua consciência transcendeu a carne.

Ele era um com o mundo.

Silêncio absoluto.

O vento cessou.

Apenas o cheiro espesso de jasmim permaneceu.

Uma gota de suor escorreu pelo rosto de Dhalsim.

O Tempo.

Pa--

--rou.

Então o velho eremita abre o punho com uma risada descontraída.

O Hado sombrio que condensava tanta maldade à casa de Dhalsim desapareceu sem deixar vestígios.

“Esse foi o Satsui no Hado. Bem, uma imitação.”

Dhalsim engasgou de alívio e limpou o suor da testa.

“Meu caro, por favor, não me surpreenda assim novamente.”

Oro apenas sorriu como se nada de grave tivesse acontecido. Somente seus olhos mostravam o que os dois sabiam; que ele estava transbordando de um instinto assassino até o momento em que seu punho se abriu, e Dhalsim estava determinado a matá-lo sem pensar.

Oro girou na ponta do pé e se inclinou contra o poste da varanda.

“Psycho Power, Ki, o Yoga Power, o Satsui no Hado.”

E o Soul Power também, acrescentou Dhalsim silenciosamente. Oro fechou os olhos e apoiou o queixo na mão, murmurando.

“Você sabe o que eu penso? Esses poderes são todos iguais, quando você busca suas raízes.”

Oro levantou um dedo e continuou seu pensamento.

“Não estou afirmando que eles são completamente iguais. Simplesmente conectados. O mesmo, mas diferentes.”

“Yoga e Satsui no Hado não são os mesmos.”

“Hum? Ora, pense na superfície da água e na parte de baixo dessa superfície.”

Oro balançou a palma da mão, imitando a água ondulante.

“Os peixes estão na água, os pássaros voam acima dela. No entanto, se você pensar sobre a perspectiva deles, a superfície é a mesma, não é?”

O mesmo, mas diferente. Dhalsim considerou essa pergunta um Koan do Zen-Budismo; uma pergunta retórica.

“Sim, de certa forma, é a mesma coisa. Mas cada superfície é diferente.”

Oro, como se estivesse lendo os pensamentos de Dhalsim, explicou.

“A superfície da água é apenas um limite, sem espessura própria. Para os peixes e os pássaros, a superfície está no mesmo lugar. Abaixo está a água, mas acima dela está o ar. Eles são diferentes. O limite é o que os separa. Por um momento, um peixe pode romper esse limite e voar pelo ar.”

“Romper limites…”

Oro fechou os olhos e acenou com a cabeça em concordância.

“A superfície da água é uma linha simples, dividindo o topo e a base. Mas os limites entre isso”, ele gesticulou ao seu redor, “este mundo e outros mundos não pode ser uma superfície bidimensional. Provavelmente é como algo que eu poderia chamar de... variedade de Calabi-Yau.”

“Cala ... bi?” Dhalsim respondeu. Às vezes era difícil seguir o pensamento do eremita.

“Esqueça Calabi-Yau. O importante é que existe mais de uma maneira de cruzar a fronteira deste mundo para outro.”

Dhalsim franziu os lábios, pensando e cruzando os longos braços.

“As técnicas de Ki, Psycho Power, meu próprio Yoga Power ... elas vêm da mesma fonte de poder, mas as maneiras pelas quais alcançamos esse poder e superamos nossos limites são diferentes?”

Oro estalou os dedos. Por alguma razão, o comportamento estranhamente jovem combinava com o velho eremita.

“Exatamente. Com treinamento, nós peixes também poderemos voar.”

No meu caso, eu posso voar de verdade, pensou Dhalsim com um sorriso. Ele considerou que o único “limite” que ele cruzou para utilizar o Yoga Power foram seu rígido treinamento e sua devoção a Agni. Ele começou a entender o velho.

Ele podia ver como o treinamento físico contínuo levava os outros lutadores a cruzarem suas fronteiras para alcançar os poderes do ki, e até mesmo o abominável Psycho Power e o Satsui no Hado tinham seus próprios limites e seus próprios métodos para cruzá-los.

“Então, a verdadeira questão é: qual poder é a fonte de todas essas coisas?” Oro perguntou, e apontou para o chão a seus pés.

“Tomemos, por exemplo, este planeta. Ele gira a quinhentos metros por segundo em sua órbita. No mesmo segundo, viaja trinta quilômetros ao redor do sol. O espaço não está parado, está sempre em movimento. E, no entanto, normalmente somos alheios a ele.”

Dhalsim entendeu isso implicitamente. Ele pensou em seu treinamento de Yoga; como através da meditação, um ser humano insignificante poderia conectar-se à vastidão infinita do espaço.

“Começo a entender sua linha de pensamento…” ele disse.

O eremita fechou os olhos e falou baixinho, suas palavras se misturando à brisa.

“Sim. O poder em si não é bom nem mau. Mesmo no caso do Psycho Power ou do Satsui no Hado.”

Ele não disse sua conclusão: que rotular um poder como mau apenas estimula erros quando se tenta suprimi-lo.

Mas Dhalsim estava insatisfeito. Ele sabia que essa explicação necessitava de uma verdade absoluta e se perguntava se o velho vislumbrara algo além do que revelou.

O que poderia ser? Ele havia encontrado a fonte do Psycho Power? A fonte que alimentou M.Bison e todas as obras malignas de Shadaloo?

... Ele sabia como eliminar esse poder em sua fonte?

Nesse caso, poderia esse velho eremita finalmente destruir Bison?

Oro riu como se Dhalsim tivesse feito a pergunta em voz alta.

“Meus dias lamuriando ‘isso é bom’, ‘aqui é mal’, e agir como se eu pudesse salvar o mundo estão longe de mim.”

Cabe a vocês agora. Não passou despercebido por Dhalsim o que Oro queria dizer.

Encontrar a fonte de energia, e usar esse conhecimento contra aqueles que se erguem, constantemente, para usar esse poder para o mal.

Dhalsim sabia então que esse conhecimento devia ser transmitido através das gerações, como Oro estava passando agora para ele.

Quando os pensamentos de Dhalsim chegaram ao fim, juntou as palmas das mãos diante do peito; não em posição de combate desta vez, mas reverência ao mestre diante dele e ao grande poder que ele representava.

O calor do final da tarde foi repelido pelo vento, e os insetos retomaram sua música noturna.

Destaques

  • Esse conto é uma livre tradução do original publicado no site da Capcom. Algumas informações foram retiradas da versão em japonês e podem não constar na versão em inglês - vice-versa.
  • Oro tem mais de 140 anos de idade. Essa informação foi citada pela primeira vez em All About Vol. 19 – Street Fighter III (p. 238). Na Gamest Mook Vol. 81 – Street Fighter III Fan Book (p. 85) foi confirmado que os eventos de SF3 se passariam em 1997, portanto esse conto se passa no período entre SF5 e SF3.
  • Oro é capaz de controlar o Ki e manifestar o Satsu no Hado – ou uma imitação, segundo o mesmo. Possivelmente possa controlar outras técnicas.
  • Oro possui conhecimento em física matemática e astronomia. Apesar dos trajes utilizados e de viver em uma caverna, Oro possui um vasto conhecimento científico.
  • Oro acredita que poderes como Ki, Yoga Power, Psycho Power, Soul Power e Satsu no Hado possuem uma origem em comum, que são alcançados através de treinamento continuo e que não possuem essência maligna ou benigna. Esse possivelmente será uma das tramas futuras a ser utilizado em SF6: a busca da fonte do Psycho Power para eliminar quem esteja utilizando esse poder – provavelmente os membros da Neo Shadaloo.
  • Esse conto foi reaproveitado como parte do Modo História de Oro em SF5.

Referências

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